19/03/2008

Sempre que ela entrava, pontualmente, às 9 horas de cada dia, ele ficava suspenso pelo perfume, pela aura que ela deixava à sua passagem. Fazia meses que ficava sempre suspenso, pontualmente, às 9 horas de cada dia, de olhar preso nos cabelos, nas mãos, no corpo dela. Arrastava há meses essa fraqueza que degenerava em indecisão. Abordá-la ou não. Sentia-se intimidado pela força da presença dela, carismática, imponente. Mas amanhã seria diferente, amanhã pontualmente, como às 9 horas de cada dia, mas amanhã seria o primeiro dia do resto dos dias. Aproveitaria a primeira paragem dela, para o café, para se lhe dirigir. Pouco idílico, de facto, mas já pouco lhe importava. Queria tocar-lhe, sentir-lhe a pele que exalava um ligeiro odor a pêssego, levá-la a casa, fazer-lhe o jantar, deitá-la no chão, tê-la só para ele. E quem sabe, o resto da vida.

Imaginou começar essa vida com ela naquele banco em frente ao lago, aquele entre as duas árvores que abraçava em criança, sedento do mundo. Comparava a aura dela à mística do lago, ao silêncio assombroso que dominava aquele espaço de árvores, de água, de gente, e um bocadinho seu também. O lago que sempre transbordava quando a chuva desabava impiedosa dos céus, inundando de destruição os terrenos adjacentes.

O telefone da secretária ao lado da sua tocava insistemente, sem ninguém que o atendesse. Eram 8h59, ela devia estar mesmo a chegar. O telefone continuou a tocar, sem ninguém que o atendesse. 9 horas em ponto. E nem sinal dela. Sentiu um tremor estranho percorrê-lo. Talvez da ansiedade de ser hoje o dia. O telefone continuava a tocar, até que alguém finalmente o atendeu.



(...)



Um suspiro profundo e alguns segundos depois, as palavras proibidas finalmente pronunciadas: O carro da Vitória foi abalrroado nas cheias ontem à noite, quando ia para casa. Encontraram o corpo esta manhã na beira do lago, junto ao banco entre as duas árvores.




#Imagem: miguel pereira

12 comentários:

Ema disse...

Devias considerar ser romancista. Juro.

Maria del Sol disse...

A Ema tem razão, não podes despediçar esse dom. :)

Anónimo disse...

este texto mexeu especialmente comigo. acho que já todos nós deixámos situações arrastar-se por pura cobardia porque temos "as costas quentes" pelo dia de amanhã, onde supostamente tudo será diferente, nós seremos diferentes.

rv disse...

mto bonito , pequenita,

bjs

Ji disse...

O tal, "nunca deixes para amanhã o que podes fazer hoje".

Gostei.

Beijo na bochecha.

Jaime disse...

c'os diabos!
Devias considerar ser romancista, não podes desperdiçar esse dom. (Os outros, menos imaginativos, plagiam).

Anónimo disse...

plágio nº2: devias considerar ser romancista, não podes desperdiçar esse dom

:D

pegueitrinquei disse...

Se quiserem posso abrir uma conta de solidariedade onde vocês vão fazendo pequenos depósitos mensais. E quando tiver o montante suficiente, publico! Que tal?

=)

V. disse...

que história triste...

Anónimo disse...

EU por outro lado acho que devias considerar ir viver pa Mafamude, onde o sistema de saúde funciona mal, ou não funciona sequer, criar ovelhas e coelhos. Aos fins-de-semana ias à cidade, tipo Aveiro ou assim, algo pequeno pa não te perderes, e montavas uma roulote de farturas e churros!...É que metes nojo a escrever dessa maneira...eu só meto gente a pegar em facas e pistolas...=/


É a vida...cada qual aos seus!*

pegueitrinquei disse...

pensava que o anónimo juvenal tinha perecido nas tempestades de inverno que assolaram Lisboa, afinal enganei-me!!!

Mas imaginava-me a levar um vida assim campestre como descreves... a parte da roullote é que não é muito boa ideia, por causa da dieta, remember? =)

Só me fazes rir!

V. disse...

um pequeno pormenor: eu por acaso nasci em mafamude! alguma coisa contra? :D