19/10/2009


Vai ficar tudo bem... (*)
Estou AQUI.


Mil Folhas


A barriga esborrachada contra a secretária impede-me de chegar ao teclado com a facilidade a que me habituei nos primeiros dias. Agora, só de braços esticados no ar e a muito custo. Ir ao fax ou à maldita fotocopiadora (sempre avariada!), tornou-se numa verdadeira e dolorosa travessia do deserto. Os troncos que são as minhas pernas arrastam-se penosos, as articulações em gritante desespero, os pés inchados da má circulação. Faz calor e a fricção entre os meus membros deixou-me a pele vermelha e irritada, ferida da gordura que já não cede qualquer espaço. O meu cabelo cai agora ao mínimo toque. Já deixei de me preocupar. Desde os 20 que assim é e não há-de ser agora que vai mudar.



Tomo mais um Centrum, fingindo uma consciência nutricional que nunca tive. Iludo-me mais uma vez, achando que assim vou recuperar a energia que há muito perdi pelos vários quilos que me prendem os movimentos.



A seguir, tempo ainda para uma cápsula que apregoa uma milagrosa luta contra a queda do cabelo.



Bem sei que nada fará.



Os anos passaram e deixei-me consumir impávida e serena pela sociedade. Tornei-me prisioneira da minha ociosidade viciante. Sou consumidora e consumida, e não já distinção alguma entre o que significa ser uma coisa e outra. Os anos limitaram-se a repartir os parcos ganhos entre a habitação precária, os inevitáveis e odiosos impostos, e o ininterrupto alimentar da morbidez da minha obesidade. A carreira prometida e sonhada nos verdes anos diluiu-se entre os milhares de números teclados, as actas redigidas, as reuniões assistidas, as horas extraordinárias, e por fim o confinamento à maldita secretária que agora me estrangula, atrás da qual procuro respirar sem sufocar.



Subsídios de férias? De Natal? Pagaram o maldito imposto municipal do imóvel que herdei sem querer e que só me dá despesas. Pagaram o seguro do carro, as mudanças de óleo, as operações, as idas ao senhor doutor.



Nunca como hoje senti a sociedade tão malévola, tão cínica na maneira como se insinua sem nos apercebermos de que estamos a cair na sua hedionda teia. Em toda a minha vida, uma pessoa apenas conheci que não se deixou levar pela corrente. Nadou rio acima e encontrou a plácida felicidade com que eu sempre sonhei.



Eu não. Nadei para dentro de mim, mergulhei na minha asquerosa gordura, fiquei aqui sentada na cadeira. Na cadeira que acabo de partir, por já não suportar o meu peso. Sei que estou à beira do despedimento com justa causa. A saúde que já não tenho assim o ditará. Depois do episódio da cadeira, fui gozada, apontaram-me o dedo, "olha a gorda das bolas de berlim, partiu a cadeira". Já nada me faz chorar.



Só quero chegar a casa e comer os meus mil-folhas.








18/10/2009

Viver cada dia como se fosse o último. Ser-se intenso, livre, espontâneo. Amar as coisas intensa, indomável e apaixonadamente. Esta é a máxima hollywoodesca com que somos involuntariamente injectados. Nos filmes, nos livros, na publicidade. Mas... e das 8h30 às 17h, enquanto estou naquele trabalho de que não gosto, a desempenhar tarefas que não me engrandecem, com as quais não me cultivo, com as quais me sinto estagnar irreversivelmente? Nesse horário de trabalho, o que fazer com a máxima do Carpe Diem? Chegará pôr um sorriso e fingir amar aquilo que se está a fazer? Chegará a hipocrisia de parecer bem por detrás de um balcão ao qual as pessoas chegam angustiadas, no fundo da sua pobreza, ou indiferentes, do alto da sua riqueza?Num cenário idealista, sim, eu era a maior apologista do Carpe Diem, e aplicava-o sem hesitar. Porque não me condicionava um horário de trabalho capitalista, onde diariamente sou confrontada com a pressão das vendas e com o crescimento do volume de negócio.
E depois há o David, que trabalha no restaurante onde almoço todos os dias. O David que fugiu de um destino mais que certo a uma aldeia no interior norte do país. Nos dias em que está mais brincalhão, pede-me em casamento e diz que vamos fugir para longe, fugir do namorado que eu o faço acreditar que tenho. O David lava a loiça, recolhe pratos, serve à mesa. E infalivelmente, pelas 10h ou 11h da manhã, é vê-lo entrar porta adentro a pedir que lhe troque moedas e sorrisos. Ponho-me no lugar dele e fico a imaginar se sentirá as mesmas angústias que eu, se é infeliz no trabalho, se se sentirá frustrado por não fazer mais por si próprio e pelo mundo. Será que ele sabe que existe o Carpe Diem, será que o sente enquanto recolhe um copo sujo de vinho, enquanto esfrega a gordura de um prato, ou quando a namorada o recebe em, casa cansado ao final do dia? Sabes do que falo, David? Imaginas o que sinto? Sabendo-o ou não, o David aparece-me sempre feliz, como se não tivesse mais 10 horas de lava-loiça pela frente. Não sei qual é o truque dele. Talvez adopte uma postura caeirista, se assim se poderá chamar. Talvez fosse mais feliz se partilhasse da ingenuidade do David. Se não me preocupasse.

17/10/2009


Há momentos do passado que chegam da maneira mais inusitada. Como num aperto de mão de uma qualquer sexta-feira, que chega em jeito de massagem. Aquela massagem que faz estalar todos os dedinhos da mão, num relaxamento que chega a roçar uma espécie de dor.

Nesse gesto, regressou ela e todas as memórias que a rapidez dos dias forçam a esquecer. E outra vez os olhos marejados. O corpo entorpecido pelo inesperado da recordação. Vontade de abraçá-la mais uma vez, de sentir as suas mãos apertarem e massajarem as minhas mais uma vez, ora relaxante, ora fingindo uma punição merecida por alguma acção menos correcta.


Tenho tantas saudades tuas.

08/10/2009



Temos mesmo que cumprimentar com beijos todos aqueles que conhecemos?

Malditos formalismos!

06/10/2009


A areia não seria mais movediça se lho pedissem.



Nem o rio mais fugidio, se lho ordenassem.



Assim, meu amor, te trago, murmurado o teu nome pelas paredes dessa Lisboa, essas paredes gastas onde te bebo para logo te perder.



Dessa Lisboa alta onde tremo de te saber, sobe esta ansiedade que nunca calei, que beijo algum nunca acalmou.



Sôfrega, calcorreio as ruas e grito o teu nome incessantemente, esgoto-me na procura de nunca te encontrar, de te agarrar para logo te perder.



Cale-se o Tejo e as gaivotas, cale-se o vento nas árvores, calem-se os fados nas Alfamas desta cidade, cale-se a chuva nas sarjetas e as varinas idas do Cais do Sodré.



Oiça-se apenas o teu coração, que nesse dia baterá uníssono ao meu.