A barriga esborrachada contra a secretária impede-me de chegar ao teclado com a facilidade a que me habituei nos primeiros dias. Agora, só de braços esticados no ar e a muito custo. Ir ao fax ou à maldita fotocopiadora (sempre avariada!), tornou-se numa verdadeira e dolorosa travessia do deserto. Os troncos que são as minhas pernas arrastam-se penosos, as articulações em gritante desespero, os pés inchados da má circulação. Faz calor e a fricção entre os meus membros deixou-me a pele vermelha e irritada, ferida da gordura que já não cede qualquer espaço. O meu cabelo cai agora ao mínimo toque. Já deixei de me preocupar. Desde os 20 que assim é e não há-de ser agora que vai mudar.
Tomo mais um Centrum, fingindo uma consciência nutricional que nunca tive. Iludo-me mais uma vez, achando que assim vou recuperar a energia que há muito perdi pelos vários quilos que me prendem os movimentos.
A seguir, tempo ainda para uma cápsula que apregoa uma milagrosa luta contra a queda do cabelo.
Bem sei que nada fará.
Os anos passaram e deixei-me consumir impávida e serena pela sociedade. Tornei-me prisioneira da minha ociosidade viciante. Sou consumidora e consumida, e não já distinção alguma entre o que significa ser uma coisa e outra. Os anos limitaram-se a repartir os parcos ganhos entre a habitação precária, os inevitáveis e odiosos impostos, e o ininterrupto alimentar da morbidez da minha obesidade. A carreira prometida e sonhada nos verdes anos diluiu-se entre os milhares de números teclados, as actas redigidas, as reuniões assistidas, as horas extraordinárias, e por fim o confinamento à maldita secretária que agora me estrangula, atrás da qual procuro respirar sem sufocar.
Subsídios de férias? De Natal? Pagaram o maldito imposto municipal do imóvel que herdei sem querer e que só me dá despesas. Pagaram o seguro do carro, as mudanças de óleo, as operações, as idas ao senhor doutor.
Nunca como hoje senti a sociedade tão malévola, tão cínica na maneira como se insinua sem nos apercebermos de que estamos a cair na sua hedionda teia. Em toda a minha vida, uma pessoa apenas conheci que não se deixou levar pela corrente. Nadou rio acima e encontrou a plácida felicidade com que eu sempre sonhei.
Eu não. Nadei para dentro de mim, mergulhei na minha asquerosa gordura, fiquei aqui sentada na cadeira. Na cadeira que acabo de partir, por já não suportar o meu peso. Sei que estou à beira do despedimento com justa causa. A saúde que já não tenho assim o ditará. Depois do episódio da cadeira, fui gozada, apontaram-me o dedo, "olha a gorda das bolas de berlim, partiu a cadeira". Já nada me faz chorar.
Só quero chegar a casa e comer os meus mil-folhas.
4 comentários:
Deixa la prima... nao deves estar pior que eu ;)
hah
beijoO
Sugestiva, esta tua personagem.
Eu não vou ao ponto de dizer que "there is no such thing as society" (Maggie Thatcher) mas que por vezes ela tem as costas largas, isso tem. (Ela sociedade, não a narradora do post, que também é larga...).
Caimos todos na teia...cada um de sua maneira!
Adorei a intensidade, faz falta boa escrita.
xiiiii....arrepiei-me toda linda!!! uau parece k ouco a tua voz a ler essas linhas!!! anda-te embora curtir a via k eh tao lindaaaaaaaaaaaaaaaaa!! :)))
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