29/02/2008

Ontem cruzei-me com ela. Ia no mesmo autocarro que eu. Entre as pessoas que saem do trabalho a horas estranhas. A minha presença foi-lhe imperceptível, não me viu nem me pressentiu. Talvez seja o efeito de quase um ano de ausência. Notei-lhe as mãos mais pálidas. Mas o cabelo continuava brilhante, mantinha o mesmo jeito de se apoiar nas coisas, os mesmos movimentos. Vestia a túnica preta que comprámos naquele dia na H&M da Baixa, a túnica que eu lhe invejava. Via-a de costas, pelo que me parecia olhar desatenta para o lado de lá da janela baça. Ténue era a linha que nos separava a ambas do anoitecer frio da rua, aquecidas que íamos naquele calor humano anónimo. Por instantes pensei aproximar-de dela, para lhe sentir o calor, o cheiro, o toque. Mas tive medo. Medo que já não se lembrasse de mim, depois deste ano de distância. Medo também que não me reconhecesse os traços, as formas que mudaram, os olhos que perderam vivacidade, o corpo que perdeu destreza. Quis correr para ela e abraçá-la, levá-la comigo dali para fora e voltarmos àquela praia onde o nosso tempo parou, nos foi roubado.

Absorta no medo que senti, não me apercebi que o autocarro parou. Desceu a senhora idosa, desceu o senhor que vinha das obras, e a seguir... Desceu ela. Quando se voltou, tinha o olhar suspenso no vazio. Mas era um olhar diferente daquele que eu conhecia. Não era ela. Enganei-me. E voltei para casa ainda mais triste do que nos outros dias.





não adianta esquecer o tempo, nem apagar o rosto nas mãos.
#Imagem: Esquecer, daniel camacho

11 comentários:

Sorrisos em Alta disse...

Nisso, somos diferentes. Eu vou-me logo esfregando nas pessoas no autocarro!
;o)

Bem bonito!
Bom fim-de-semana!

Ana disse...

A desilução de não ser ela foi maior...

Bom fim de semana!!
:)

Marisa Fernandes disse...

É um momento triste, de facto. Ou melhor, frustrante, mas o que escreveste ficou quase mágico! * =)

rv disse...

qual a maior desilusão?... de não ser ou de já não ser...pq as mmórias serão sempre eternas...

:))

PDuarte disse...

És bonita, não es?

Rui Caetano disse...

Um texto interessante.

Ema disse...

toda a gente que perdeu alguém passa por isso. especialmente numa cidade grande. às vezes penso avistar uma ou duas pessoas que já não podem ser avistadas.

nelio disse...

belo texto. não sei o contexto, mas gostei de me enlear na cadência das palavras. já vi que a citação do drummond ficou muito bem na barra lateral. do und3rblog, podes roubar tudo o que te apetecer... :)

Anónimo disse...

percebes-me, então?

e o que é mais estranho, é que os anos passam e isto repete-se vezes sem conta...

pegueitrinquei disse...

Claro que te percebo. Não sei eu outra coisa!

agriao disse...

Isso acontece-me tantas vezes...*