25/03/2010

ἐπιστολή




Ela já o tinha avisado antes. Ele não quis saber. Que parasse de olhar assim para ela, que se deixasse de surpresas, de jogos, de gestos, dessas coisinhas de quem ama e que ela menosprezava. Queria que ele percebesse de uma vez por todas que era uma mulher independente, que não queria nem precisava de homem algum ao seu lado que a fizesse sentir-me mais só por ter alguém ali. Já o tinha avisado que não queria amar ninguém, já não o sabia fazer desde a última vez que isso acontecera. Amara demais e fora amada de menos. A solidão a dois não voltaria pois a repetir-se, ela não deixaria que isso acontecesse. E por isso, não se deixou levar no amor insistente dele. Limitou-se a avisá-lo, vezes e vezes sem conta, na esperança de vencê-lo pelo cansaço. Mas nada parecia demovê-lo. Teimoso de um raio! Pára de criar expectativas, já te disse e repito que nunca, mas NUNCA mais hei-de deixar que a minha felicidade esteja nas mãos de alguém. Por isso, pega em ti e faz-te ao caminho, que daqui não levas nada. Pobre dele. Era vê-lo a arrastar-se pelos cantos, visivelmente derrotado durante semanas a fio, devastado por uma frieza nunca antes vista. Não imaginava que alguém se pudesse magoar ao ponto de se recusar a amar de novo. Durante semanas procurou convencer-se de que a esqueceria, de que o amor em si acabaria por morrer, sufocado no seu próprio exagero de existir. Engano puro. Nunca entregou a memória dela, enquanto viveu. Soube dela vários anos mais tarde. Soube-a entregue aos cuidados de terceiros, internada numa qualquer instituição para os que se perdem da realidade. Soube-a enlouquecida do amor que recusou, do amor que não quis abraçar. Os dias, dedicava-os a redigir cartas infinitas de amor. Cartas que se poderiam ter perdido na demência, mas que alguém achou por bem que se salvassem desse destino. Não se sabe ao certo quantas cartas terá escrito, nem tão pouco quem seria esse nome que repetia a um ponto quase insuportável, o que confirmava a sua demência, já há tanto diagnosticada. Sem se lembrar muito bem de como, ele identificou-se num dos primeiros textos que viu algures escritos. Alguém terá publicado as mais que muitas epístolas por ela redigidas. Por fim, ele soube. Que ela afinal também o amara.

E que desse amor que não quis dar nem receber, terá enlouquecido.

3 comentários:

lampâda mervelha disse...

Trágico. Fatal. Realista.

Há aqui frases que me ficam na cabeça...

É bom.

lampâda mervelha disse...

Trágico. Fatal. Realista.

Há aqui frases que me ficam na cabeça...

É bom.

Raquel Pires disse...

Este texto deu-me um medo terrível. Mas muito bom... muito bom mesmo.