14/07/2009

Tu vendes roupa, eu, dinheiro. Previa-lo? Eu não. Não quando te derrubava e te vencia à dentada, e tu corrias para o colo da mãe e te queixavas lavado em lágrimas. Ainda te vejo, beicinho pendurado, tão loirinho e magro, agarrado à saia dela a mana mo’deu-me, a mana é má. Eu nunca admitia o mal que te fazia. E permanecia impávida e serena, enquanto tu mostravas à mãe os meus dentes marcados na tua pele. Os insultos, os palavrões, o bater de portas que se ouvia na casa da vizinha Lena. Horas depois, tréguas feitas, e brincávamos outra vez no teu tapete, com estradas e casinhas desenhadas, carrinhos desgovernados de um lado para o outro.

Hoje? Chegamos a casa cansados, a luta é sobre quem faz o jantar, e quem lava a loiça, e quem estende a roupa e quem tem direito ao computador ou ao carro nessa noite. Os sonhos ficam distantes nessas alturas. Acendemos um cigarro, falamos sobre as contas que temos a pagar, vemos de rajada o estúpido concurso que a TV cospe.

09/07/2009

Serenipity


Serendipity is the effect by which one accidentally discovers something fortunate, especially while looking for something else entirely. Wikipedia

247 posts, 12 meses e tantos comentários depois, finalmente a

TRANQUILIDADE.

Esse estado de alma que sem saber procurei por tanto tempo. Passageiro ou não, sinto-o em pleno. E sabe-me bem.

07/07/2009

Viviam presos na meia idade, numa malha de almoços e jantares e concursos televisivos inócuos e as visitas dos netos aos domingos. Ainda iam para a cama de forma regular - dependendo do ponto de vista - mas com a frequência normal para a sua idade. Uma vez por semana. Sem grandes dramas, sem grande entusiasmo, sem a dedicação de outras idades. Mas ainda se amavam, e isso chegava-lhes. Ela já raramente ficava por cima. A ele não lhe fazia diferença, ela tinha aquele problema nas costas e ficando por baixo custava-lhe menos, dizia ela às amigas em desabafo. E ele agradecia. Gostava de comandar, não obstante por ora não houvesse muito que comandar, já não reservavam grandes surpresas um ao outro. Tinham tido uma vida feliz. Primeiro os filhos, depois os netos, os anos a passarem sempre intermediados pela inevitável semana no Algarve, as mesmas rotinas, os mesmos gestos. E sempre a mesma ternura presente. Já não havia ele a chegar quente do trabalho e a tomá-la ali mesmo, na cozinha, ou ela a acordá-lo gulosa a meio da noite de língua generosa. Agora havia o chá de camomila antes de dormir, ela preguiçosa no sofá, ele com um qualque bricolage. E a queca semanal.