23/11/2008

A galeria foi percorrida em silêncio. Cada tela apreciada sem ser pronunciada uma palavra. O casal lésbico sempre ali ao lado foi talvez a presença mais calorosa ao longo daquela visita frívola. Até que chego a uma sala onde uma tela projecta sempre o mesmo vídeo, de alguém que traça círculos infinitos à sua volta. E do lado de lá da tela, uma criança. Da qual só vejo a sombra. Os canudos caíndo do alto da sua pequena cabeça num rabo de cavalo comprido. E a sua sombra leve, embalada no infinito dos círculos do vídeo, ingénua. Deixo-me ficar, sinto tudo cair por terra. Sinto-me uma versão forjada do Peter Pan. Vejo-me naquela sombra projectada na tela. Vejo-me de cabelo apanhado em rabo de cavalo, vejo-me dançar na rua onde ficava a minha casa, e sinto-me feliz porque ainda nada sei do mundo. E nada pode ou consegue superar essa felicidade da infância. Invejo-a, mais do que tudo, invejo a sua inocência, invejo a protecção que sente na mão da mãe que a pega e a leva galeria fora. Nesse momento, inveja. E um olhar a ficar marejado, para logo se conter e rumar porta fora. Sim, porque os corações de pedra não choram.

Lá fora está frio, e o silêncio mantém-se inquebrável. Já dentro do carro, dois ou três bafos de erva, já não sei, trazem-me de volta a realidade ainda mais crua. Falar de sentimentos? Naaah. Os corações de pedra não o fazem.

Quero voltar lá para dentro, esconder-me atrás da tela e assim criança dançar para sempre.

clair de lune-cello - Debussy

13/11/2008

Da ruralidade


Sentava-se quase todos os dias na mesma carruagem que eu. E nunca deve ter reparado em mim como eu fazia com ela. Imagino que viesse de algum sítio de nome estranho desses que abundam para lá do Tejo. Fazia-me lembrar as mulheres da minha aldeia. Ar de alcoviteira alheada do mundo, sempre atenta aos movimentos das vizinhas, e adivinho que aos casamentos e aos funerais do bairro também. E não houve um único dia que a visse percorrer aquele caminho sem a sua companhia inabalável: a Maria a espreitar de dentro da mala. Sim, a Maria, aquela revistinha para donas de casa onde se fica a saber os problemas sexuais que assolam o país. E todos os dias ela folheava a revista, de trás para a frente – quiçá por não haver disponibilidade orçamental para outras publicações. E todos os dias eu ficava espantada a contemplá-la, num misto de adoração que nunca consegui muito bem deslindar. A familiaridade com as mulheres que deixara para trás na minha aldeia? A simplicidade tosca que ainda hoje me repugna e atrai? Ou a terrível possibilidade de eu própria me ter tornado numa dessas mulheres rústicas, intrépida alcoviteira, costureira do maldizer alheio? Bata dos chineses em riste (diz que ali para Pegões há umas muita baratas), as chinelas a fingirem-se de ortopédicas, a orelha sempre atenta, a língua sempre afiada. Seria eu feliz assim? Casada com o pedreiro ou com o padeiro lá da aldeia? E se eu me tivesse entregue à ruralidade?


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