Sentava-se quase todos os dias na mesma carruagem que eu. E nunca deve ter reparado em mim como eu fazia com ela. Imagino que viesse de algum sítio de nome estranho desses que abundam para lá do Tejo. Fazia-me lembrar as mulheres da minha aldeia. Ar de alcoviteira alheada do mundo, sempre atenta aos movimentos das vizinhas, e adivinho que aos casamentos e aos funerais do bairro também. E não houve um único dia que a visse percorrer aquele caminho sem a sua companhia inabalável: a Maria a espreitar de dentro da mala. Sim, a Maria, aquela revistinha para donas de casa onde se fica a saber os problemas sexuais que assolam o país. E todos os dias ela folheava a revista, de trás para a frente – quiçá por não haver disponibilidade orçamental para outras publicações. E todos os dias eu ficava espantada a contemplá-la, num misto de adoração que nunca consegui muito bem deslindar. A familiaridade com as mulheres que deixara para trás na minha aldeia? A simplicidade tosca que ainda hoje me repugna e atrai? Ou a terrível possibilidade de eu própria me ter tornado numa dessas mulheres rústicas, intrépida alcoviteira, costureira do maldizer alheio? Bata dos chineses em riste (diz que ali para Pegões há umas muita baratas), as chinelas a fingirem-se de ortopédicas, a orelha sempre atenta, a língua sempre afiada. Seria eu feliz assim? Casada com o pedreiro ou com o padeiro lá da aldeia? E se eu me tivesse entregue à ruralidade?
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6 comentários:
Há muito que não publicavas, mas valeu a espera. "A simplicidade tosca que ainda hoje me repugna e atrai?" - Bem captado.
Pelo menos duma coisa tenho a certeza: se te tivesses entregue à ruralidade perdia-se uma blogger talentosa. :)
Conheces, certamente, o soneto de Florbela Espanca que começa assim.
"Ser a moça mais bela do povoado..."
Ela aí deseja ardentemente a simplicidade e o lirismo da ruralidade!
Todos nós desejamos ter outra vida, nem que seja "à experiência"... :-))
Abraço
lol...Gostei do post.
O campo e a sua ruralidade ganham, certamente, em qualidade de vida quando comparado com a cidade. Isto se falarmos da qualidade do ar, da paisagem, do stress, etc. Se falarmos de serviços, produtos, infraestruturas, acesso à cultura, etc, então aí o caso muda de figura.
Acredito que o mesmo se passa com as pessoas, não sendo regra, mas diria que pelo menos é regra geral.
Podemos comprovar esta afirmação pelo simples facto de que para obterem uma educação superior, em praticamente todos os casos, o habitante rural tem de se transformar num ser urbano. Pode até voltar para o campo, mas nunca será a mesma pessoa simples, sendo que a grande maioria não volta, construindo a sua vida na cidade.
As pessoas do campo são bonitas pela sua simplicidade e por ainda se conservarem pessoas. As pessoas da cidade, são seres que em poucos casos ainda vivem como pessoas. São seres plásticos e camuflados com tudo akilo que as rodeia. Mas são mais "giras".
Posso orgulhosamente afirmar que, tive a sorte de viver bem de perto as duas realidades. Sou um ser urbano munido de algumas qualidades de pessoa rural e gosto disso. Mas tenho consciência da barreira que existe entre os dois mundos, nas conversas, nos gostos, na cultura, nos hábitos, na forma de encarar o mundo e na forma como convivem com outros.
Adoro o campo com tudo o que tem para oferecer e é sem dúvida uma parte essencial na minha vida, mas prefiro sem dúvida viver na cidade onde tudo acontece e tudo se passa.
Ainda bem que não te ficaste pelo campo e te tornaste uma mulher cosmopolita. Acho que faz sempre bem conhecer os dois lados.
Mas deixa lá que também não largaste a ruralidade por completo!...vê lá se me fazes esse bigode e tratas do cheiro a queijo!...=P
Bj*
Se tivesses entregue à ruralidade, tinhas deixado crescer o bigode :)
Não troco a minha ruralidade :)
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