Tu vendes roupa, eu, dinheiro. Previa-lo? Eu não. Não quando te derrubava e te vencia à dentada, e tu corrias para o colo da mãe e te queixavas lavado em lágrimas. Ainda te vejo, beicinho pendurado, tão loirinho e magro, agarrado à saia dela a mana mo’deu-me, a mana é má. Eu nunca admitia o mal que te fazia. E permanecia impávida e serena, enquanto tu mostravas à mãe os meus dentes marcados na tua pele. Os insultos, os palavrões, o bater de portas que se ouvia na casa da vizinha Lena. Horas depois, tréguas feitas, e brincávamos outra vez no teu tapete, com estradas e casinhas desenhadas, carrinhos desgovernados de um lado para o outro.
Hoje? Chegamos a casa cansados, a luta é sobre quem faz o jantar, e quem lava a loiça, e quem estende a roupa e quem tem direito ao computador ou ao carro nessa noite. Os sonhos ficam distantes nessas alturas. Acendemos um cigarro, falamos sobre as contas que temos a pagar, vemos de rajada o estúpido concurso que a TV cospe.